quarta-feira, 11 de junho de 2008

Tirei a roupa

Tirei a roupa, olhei-me no espelho e vi um grande ponto de interrogação. Por quanto tempo continuaria a areia a escorrer na ampulheta? Mais do que a cena quotidiana que o espelho via, retalhos do passado e cismas do futuro teimavam em aparecer. As aparências iam mudando devagar, protegidas pelo vapor que escapa do chuveiro onde lavo minhas partes e minhas culpas. Escovar os dentes, ver quão desalinhado está o cabelo, aparar a barba, temperar a água do banho, passar o xampu e só então deixar o sabonete fazer o seu serviço. Depois, enxugar o corpo alto e cada vez mais volumoso. Todo dia ele faz tudo sempre igual, deve dizer a superfície metalizada e polida que foi feita para refletir imagens e não para escarafunchar a vida dos outros. Se acha muito inteligente, nessa paródia barata de Chico Buarque. Só falta me vir com Cecília Meirelles, ambígua história, de que sou o espelho e a trajetória... O importuno não se conforma em ficar restrito ao seu papel e se deleita com palpites e insinuações. Esse cabelo está mais grisalho, a barriga já foi bem menor. Onde se esconde o guerreiro triunfante de tantas noites de glória? Convivo com esse enxerido há muito tempo. O que mudou por fora ele pode observar. A forma nossa de cada dia nos dai hoje, a de ontem não existe mais. Do recheio ele só sabe a missa metade, pois não sou besta de me expor demais. Nem para mim mesmo. Olho para o reflexo, no meio da bruma, e me pergunto a cada dia quem é esse mamífero guloso, se já cumpriu o seu destino ou se ainda tem tempo para avançar em novas trilhas. Vejo naufrágios e apoteoses, sempre passageiros, só as fotografias e os filhos são definitivos. Encho-me de coragem, passo a toalha no vidro umedecido, ponho os óculos, penteio o cabelo, olho a figura recomposta e descubro mais uma vez que a vida vai recomeçar e que ainda há muito por fazer. (E.M., 11/06/2008)

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